Capítulo
II
Respirando
profundamente, eu tentava raciocinar em meio à escuridão. Liguei o flash da câmera, que se estendeu sem
oposição por vários metros.
Eu
estava sozinha quase em frente ao sobrado. As ladainhas da procissão se perdiam
na distância. Era um esforço manter o meu senso de direção naquela cidade tão
familiar.
Entretanto,
eu podia sentir algo fora do lugar. Movida por uma obsessão mais forte do que o
medo, comecei a fotografar o casarão de cada ângulo.
Era
difícil explicar: ao mesmo tempo em que sentia um pavor intenso e prestava
atenção em cada elemento, eu me encontrava distante de mim mesma. Uma estranha
sensação de reconhecimento começou a se formar em mim, progressivamente mais
forte e, ainda assim, indefinível.
Fotografava
a construção: paredes machucadas e sujas, pedras desgastadas entre as fachadas
lateral e frontal e, sobretudo, velhas portas e janelas cerradas com tábuas
pregadas no exterior. Por que alguém teria assumido aquele trabalho tão pouco
estético em uma cidade ávida por conservar suas lembranças da colônia e do
Império? Na verdade, todo o estado de deterioração daquele sobrado era um
elemento paradoxal em Paraty.
A
procissão havia por fim se afastado. Não se ouviam mais as reverberações dos
cantos e das rezas. O silêncio era absoluto. Até o ar escaldante estava imóvel.
Minhas mãos começaram a tremer; sentia que havia invadido um espaço cujos
segredos não eram meus.
Tentei
voltar à racionalidade. O desaparecimento da tocha, ainda que estranho, podia
ser explicado: às vezes, as pessoas largam objetos sem perceber, não? Talvez
fosse esse o caso; fazia sentido, pois a tocha havia sumido após eu escutar
aqueles sussurros, quando o meu medo se intensificara. Os próprios murmúrios
poderiam ter ocorrido devido a algum efeito incomum de acústica na cidade
antiga. E eu não acreditava em espaços proibidos.
Um
pouco mais calma, me aproximei ainda mais do casarão, para fotografá-lo melhor.
Afinal, eu não estava convencida completamente da normalidade da situação, e o
sentimento de que ali havia algo errado permanecia.
Jamais
consegui tirar aquela foto. Enquanto arrumava o foco da lente, fui
lançada para trás com tal força, que fiquei temporariamente sem ar, e quase
caí.
Apenas
a escuridão me cercava. Porém, antes que eu pudesse pensar em esboçar qualquer
reação, surgiu, por detrás do sobrado, o maior cão que eu já vira: um amontoado
de músculos e pêlos com mais de um metro e meio de altura. Quando direcionei o flash da câmera para iluminá-lo, pude
ver que o animal não tinha olhos. Entretanto, isso não o impediu de caminhar
lentamente na minha direção.
-- O terceiro capítulo do conto será publicado na próxima semana.
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